Agência do Mais Brasil

Durante o mês de dezembro, o mundo celebra de mãos dadas a luta contra a Aids. Nas últimas três décadas, o Brasil se tornou referência mundial no tratamento da doença

Uma longa história de dramas e conquistas. Há três décadas, o vírus HIV faz vítimas por todo o mundo. Mas o Brasil, nessa caminhada, se destaca como referência mundial no tratamento da doença. O Sistema Único de Saúde garante a distribuição dos antirretrovirais e acompanhamento médico dos pacientes.

Para entender essa doença, é preciso voltar no tempo. Os primeiros registros apareceram Estados Unidos, quando 41 jovens foram diagnosticados com o que, na época, se imaginava ser um tipo de câncer. O que intrigou os médicos é que todos eram homens e homossexuais.” Não tardou para a doença ficar conhecida como “câncer gay”. Ainda no início dos anos 1980, o vírus já tinha contaminado 89% dos hemofílicos dos EUA. No Brasil, em 1982, houve os primeiros sete casos confirmados da doença, em São Paulo.

Todos pacientes de prática homo/bissexual, tendo sido atendidos no Hospital Emílio Ribas, atual centro de referência no combate à doença em São Paulo. Os pesquisadores ainda não haviam chegado a um consenso sobre o nome para esta doença, que era tratada pela imprensa, assim como lá fora, como ‘Peste Gay’. No mesmo ano, casos de AIDS foram relatados em 14 países ao redor do mundo. Ainda em 1982, ocorre a primeira Conferência sobre AIDS, em Denver, EUA. A doença foi relatada em 33 países.

Em 1984, estudos descobriram o retrovírus considerado o causador da AIDS. Dois grupos de cientistas brigam pelo posto de primeiro a descobri-lo: um do Instituto Pasteur, em Paris, chefiado pelo Dr. Luc Montangnier, e o outro dos Estados Unidos, por Robert Gallo. No ano seguinte, em 1985, chegou ao mercado um teste sorológico de metodologia imunoenzimática, para diagnóstico da infecção pelo HIV que foi utilizado para triagem em bancos de sangue. No Brasil, houve o registro da primeira ocorrência de transmissão perinatal, também em São Paulo.

Apenas em 1986 surgiram as primeiras medicações para o tratamento da doença. A azidotimidina, ou AZT, foi inicialmente criada para combater tumores. Mas depois de alguns estudos registou-se uma diminuição na mortalidade dos pacientes com HIV. Um órgão norte-americano de controle sobre produtos farmacêuticos, FDA (Food and Drug Administration), registrou e legalizou a distribuição da droga antiviral.

Novas medicações chegam ao público em 1994: os inibidores de protease, que são enzimas que quebram ligações os aminoácidos das proteínas. Novamente, houve diminuição da mortalidade, melhora dos indicadores da imunidade e recuperação de infecções oportunistas. Nesse período, os remédios ainda não existiam no Brasil. Quem quisesse se medicar devia importar as medicações a preços elevados, isso sem falar nos efeitos colaterais dessas drogas. O cearense Ervando Oliveira, aposentado de 47 anos, teve o diagnóstico do HIV em 1998 e comenta que, para ele, um dos maiores avanç os que tivemos no combate ao vírus foi em relação às dosagens das mediações. “Eram dezessete comprimidos, se não me engano, dezessete comprimidos por dia. Então era uma dose bem pesada, se considerar com hoje que eu tomo quatro comprimidos”, relembra.

Exemplo mundial

Foi em 1996 que o Brasil se consagrou como um exemplo mundial do combate à doença quando disponibilizou gratuitamente o tratamento com coquetéis de drogas antirretrovirais, no sistema público de saúde, o que aumentou em vários anos a sobrevida das pessoas infectadas. Desde 2013, os medicamentos antirretrovirais podem ser encontrados nas unidades de saúde independentemente da quantidade de vírus apresentada.

Até setembro de 2018, 585 mil pessoas com HIV/aids estavam em tratamento no país. A maioria, 87%, fazem uso do dolutegravir, um dos melhores medicamentos do mundo que está disponível gratuitamente no SUS. O medicamento aumenta em 42% a chance de diminuição da carga viral do HIV no sangue entre adultos. Além disso, a resposta virológica com o medicamento é mais rápida: no terceiro mês de uso mais de 87% os usuários já apresentam supressão viral, segundo estudos realizados pelo Ministério da Saúde.

Sucesso no tratamento

Esse feito, além de possibilitar o acesso ao tratamento a maior parte da população, aumentou drasticamente a adesão ao tratamento, que antes não era disponibilizado em grande parte dos postos de saúde além de demandar grandes investimentos financeiros para importações de medicamentos. Nelson Guedes, coordenador do Programa de Aids e Hepatite do Acre, explica que os pacientes que fazem o tratamento, com o uso correto das medicações, tornam-se indetectáveis, tornando quase nula as chances de transmitir o vírus. Por isso, considera que todos esses avanços, conjuntamente, estimulam a adesão dos pacientes ao tratam ento e, assim, coloca um fim nesse ciclo de transmissão.

“Antes, nós tínhamos poucas ofertas de tratamento. Eram no máximo cinco tratamentos que eram ofertados. A capsula era muito grande, e uma quantidade imensa que o paciente tomava. Então, hoje, tem um leque de tratamentos, um leque de opção de medicamentos. A adesão ao tratamento dos pacientes está muito boa porque também, além de diminuir a quantidade de capsulas que eles tomavam, o tamanho também influenciou e tudo isso fez aumentar o número da adesão do paciente.”

Desinformação e preconceito

A história da Aids é uma luta extensa e com muitos desafios. Muitos dos quais já foram superados. É por isso que Gilberto Occhi, Ministro da Saúde, comemora os 30 anos do combate à doença, que o Brasil completa em 2018. “É o momento de uma grande reflexão após esses 30 anos de luta contra a doença, pelos avanços que temos conseguido. O Brasil tem sido uma referência mundial na questão do HIV e da Aids, naquilo que nós temos proporcionado à nossa socied ade, naquilo que nós conseguimos reduzir na questão da mortalidade”, celebra.Porém, Gilberto ressalta que a luta continua. “Além da comemoração, é um momento também de uma reflexão sobre o que podemos ainda fazer, aquilo que podemos alertar, as prevenções as que devemos recomendar sempre”, destaca.

Em relação ao tratamento, e as formas de prevenção, o sucesso das ações é facilmente analisado através das estatísticas. Mas, o que não se pode medir é a discriminação que os portadores do HIV ainda sofrem. A desinformação é uma das principais causas que estimula esse preconceito. Quem vivencia isso, e sabe bem da dificuldade que é conviver com a doença, é a matogrossense Raiza Medeiros. A veterinária, de 29 anos, conta que foi diagnosticada com a doença e que, depois da notícia, a discriminação foi evidente. “Eu percebia que as pessoas comentavam é sobre mim e aqu ilo me incomodava. E aí eu comecei a analisar por que? Aí eu falei: quer saber, pra mim diabetes, câncer, qualquer, é lúpus, HIV ninguém quer ter. É uma alteração de saúde que deve ser tratada e cuidada como qualquer outra”, desabafa.

Graças ao tratamento e cuidados médicos, Raiza está com a carga viral indetectável e vive uma vida plena. Trabalha, viaja, sai com os amigos e familiares e o mais importante, sente-se plena, acima de qualquer vírus.

“Eu não sou o que me aconteceu. As coisas que me acontecem elas não me definem. Eu não sou a Raiza HIV, eu não sou a Raiza veterinária, eu sou a Raiza. Eu sou eu. Eu quero que as pessoas me olhem por aquilo que eu sou.”

O caso de Maria Georgina Machado revela bem o quanto a desinformação sobre a doença é grave. O ano é 1999, 17 anos após o primeiro caso de HIV do Brasil e apenas três dos remédios antirretrovirais começaram a ser distribuídos pela rede pública. Nessa época, com 37 anos, ela trabalhava como professora de ciências. Viúva, sem os pais, nem mesmo qualquer parente no estado de Sergipe. Sozinha, com uma filha de 12 anos, Maria Georgina ainda enfrentava o drama do desempregado. Entrava e saia de hospitais, sem nunca entender o porquê. Maria conta que até mesmo nos livros de ciência o preconceito e a completa desinformação estavam disseminado.

“Desde 1996 que eu fui perdendo peso, perdendo peso… E aquela diarreia constante. Aí, eu ia me internava, tomava soro. Isso foi 1996, 1997, 1998, 1999. Nesses anos, eu passei a ficar entre hospital e casa, até que eles me internaram de vez e foi descoberto o diagnóstico. Eu, como professora, ensinava. Eu era até professora de ciência, mas, assim, a gente ensina o que está nos livros. E na realidade eu ainda tenho o livro até hoje que dizia que essa doença era originária de homens que faziam sexo com homens, então, pra mim, eu não estava no grupo.”

No pior momento da doença, Maria pesou 35kg

No pior momento da doença, Maria pesou 35kg

Ninguém imaginava. Era o ano de 1999. E ninguém desconfiava do HIV. Mas era. Era Aids. O tal “mal do século” tinha chegado à professora também. A vida dela virou entre internações e dramas. Georgina lembra que não pôde mais voltar às salas de aula devido à doença. Mesmo depois de curada da Aids, ainda sofria com a resistência dos pais dos alunos e professores, que descobriram o diagnóstico, pois, mesmo não estando mais doente, ainda seria portadora do HIV.

Com o tratamento adequado, Maria venceu o HIV e hoje trabalha na conscientização da população

A luta continua

São vários os desafios que ainda temos que vencer. Segundo relatório do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o HIV/Aids (Unaids), no mundo, de cada 10 pessoas apenas uma fez o teste e sabe que está com o vírus. Em 2017, aproximadamente, 37 milhões de pessoas, no mundo, viviam com HIV. Destes, aproximadamente 15 milhões não tiveram acesso ao tratamento.

Um mobilizador social de Belo Horizonte, de 26 anos, que prefere não se identificar, faz um apelo para que todo mundo faça a checagem da doença. Ele considera que as pessoas ainda têm muito receio em relação à doença. É um tabu. Mas, para ele, ser diagnosticado com o vírus não é tão ruim. Pior ainda é o caso das pessoas que têm o vírus, mas não sabem. De acordo com dados do Ministério da Saúde, dos 866 mil infectados no país, aproximadamente 16% ainda não foram diagnosticados.

“O que eu sempre falo é que existem três sorologias pro HIV: a positiva, a negativa e a interrogativa. A negativa, quando se sabe que sua sorologia é negativa, A partir daí, a gente tem um leque de prevenção: a gente tem a prevenção combinada, a gente tem PREP, a gente tem PEP, a gente tem a camisinha. Quando a gente descobre a sorologia, é importante que a gente comece a tomar medicação justamente pra não evoluir pra um quadro de Aids, né? Agora, quando a gente não sabe a sorologia, existe a possibilidade de, além de a gente adoecer, ter uma doença oportunista, evoluir pra um quadro de Aids, infelizmente você ainda pode infectar outra pessoas. Então, é o que eu sempre falo: muito melhor realmente é fazer o teste. Não é vergonhoso, muito pelo contrário. Acho que cuidar da saúde, começar a ter um autocuidado, é superimportante.”