Francelina de Morais acordou num sobressalto na madrugada de 11 de outubro de 2015, com vizinhos gritando à sua porta. Foi assim que ela soube, por volta das 3 da manhã, que Alex, o filho mais velho, acabara de ser atropelado na rua de cima de sua casa, em Sapopemba, um bairro pobre na Zona Leste de São Paulo. Chegava a ela assim, sem nenhum cuidado, o que seria a tragédia de sua vida. Numa manobra mental de negação, Francelina perguntou: “Que horas são?”, na esperança de que Alex ainda estivesse na casa noturna distante dali, onde trabalhava como segurança. O rompante de incredulidade não demorou a passar. Mesmo sem coragem para chegar perto do corpo, Francelina logo soube que era Alex estirado no asfalto. Cerca de 20 minutos depois, ele foi levado pelos socorristas. Morreu no hospital na manhã seguinte, aos 39 anos.

Aturdida, Francelina pouco se inteirou dos detalhes que levaram à morte do filho. Os relatos dos moradores davam conta de que uma Honda CG vermelha com dois homens havia passado em alta velocidade, seguida por uma viatura com dois policiais. A moto teria batido em Alex e fugido em seguida. Parecia um crime de trânsito com omissão de socorro. Mas, no hospital, a narrativa mudou completamente. “Quem disse que seu filho foi atropelado?”, disse a Francelina o médico responsável pelo atendimento. Ao ouvir dela que a Polícia Militar tinha registrado essa versão no boletim de ocorrência, ele interrompeu: “Não, ele não foi atropelado. Seu filho levou um tiro na nuca e morreu”.

Francelina foi até uma delegacia pedir que o registro de atropelamento fosse corrigido. “A senhora está falando que seu filho foi baleado? A senhora fala isso, fala aquilo, o médico fala que foi tiro… Mas quem prova que foi mesmo tiro?”, disse o plantonista da delegacia, segundo Francelina. Começava ali a peregrinação para provar que Alex fora vítima não só de um assassinato, mas também de uma armação para livrar seu assassino de culpa. Só depois de Francelina voltar acompanhada de uma advogada e acionar a Ouvidoria da Polícia Militar, a versão correta foi registrada num boletim de ocorrência. Ela ainda precisou brigar para conseguir uma máquina de raios X; o Instituto Médico-Legal da Região Leste, para onde o corpo havia sido levado, não tinha o equipamento. Depois de feito o exame, ficou provado que havia uma bala na cabeça de Alex.

Aquelas horas de terror eram só as primeiras de um longo período para provar que Alex foi assassinado por policiais. Casos assim percorrem um caminho extenso, difícil e solitário até chegarem aos tribunais na tentativa de fazer justiça. Primeiro se tornam objeto de um inquérito policial, depois de uma denúncia do Ministério Público, que, se aceita por um juiz, vira um processo – com grande chance de absolvição. A regra é que policiais que cometem crimes terminem impunes, nas ruas. “Para condenar um policial hoje, é preciso ter provas incontestáveis, como vídeos e gravações, além de uma testemunha tão ilibada quanto um padre”, afirma Samira Bueno, diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Só exceções são condenados e presos, aqueles casos paradigmáticos, como os de policiais que mataram a mulher ou o filho, ou então cometeram algum sadismo durante o crime.”

Em 2017, a polícia paulista quebrou um novo – e infeliz – recorde de assassinatos. Até setembro, militares e civis em serviço e de folga mataram 687 pessoas – a maior soma para o período dos últimos 15 anos. Em números absolutos, a corporação paulista é a segunda que mais mata entre os estados brasileiros: 857 pessoas em 2016, atrás apenas do Rio de Janeiro (925). É certo que a maioria expressiva dos policiais cumpre seu dever sem incorrer em crimes. É certo também que os policiais combatem criminosos perigosos em um país violento – onde mais de 61 mil pessoas foram assassinadas no ano passado – e, em alguns casos, podem vir a matar bandidos em confrontos. Mas não há justificativa razoável para a escala com que isso acontece no Brasil.

ÉPOCA – Aline Ribeiro e Daniel Amorim,  com Bruna de Alencar